Eu nasci em 1987. Dessa forma, minha infância e início da adolescência ocorreram durante a década de 90. Há muito dessa coisa do “orgulho de ter crescido nos anos 90”, mas ainda sim eu só consigo me lembrar de 1995/1996 para frente. Perdi diversos acontecimentos anteriores a esses anos justamente porque era jovem demais para entender ou para me lembrar (minha memória é muito ruim, tem esse porém também).
Porém, existem situações que mesmo que a gente não consiga se lembrar, acabam fazendo parte, de certa forma, de como vivemos. A década de 80 foi marcada pelo “surgimento” da AIDS, e até grande parte dos anos 90 muito ainda era desconhecido pela população e o preconceito deslanchava cada vez mais.
Voltamos para 1987. E é nesse ano que a história de Diga Aos Lobos que Estou em Casa (Tell the Wolves I’m Home, no título original em inglês) acontece. Carol Rifka Brunt escreveu uma história bem inspirada sobre uma adolescente que precisa lidar com a perda de sua pessoa mais querida – e que acaba descobrindo que perdeu muito mais do que imaginava.
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Estamos nos anos 80, mais precisamente em 1987 e June Elbus é uma adolescente estadunidense de 14 anos. Ela vive com os pais e com Greta, a sua irmã mais velha, e também é muito apegada ao tio e padrinho, Toby. A vida da garota não é a mais distinta, e não há nada de extraordinário em sua rotina e em seu jeito de ser: June é uma boa filha, uma garota um pouco tímida e sonhadora demais e se dá bem melhor com o tio do que com a irmã ou crianças da sua idade. Ela gosta de brincar/acreditar que vive na Idade Média e Toby sempre foi um grande incentivador de suas atitudes e modo de pensar.
Eu não estava interessada em beber cerveja e vodca ou fumar cigarro ou fazer todas as outras coisas que Greta acha que nem posso imaginar. Não quero fazer essas coisas. Qualquer um pode imaginar coisas assim. Eu quero imaginar o tempo com fendas, bosques cheios de lobos e pântanos frios à meia-noite. Sonho com pessoas que não precisam fazer sexo para saber que se amam. Sonho com pessoas que só se beijariam no rosto. (página 81)
No entanto, Toby tem AIDS e acaba falecendo precocemente. June fica devastada, especialmente quando é informada de que um “amigo” do tio foi a pessoa que passou a doença para ele. Ao vê-lo no funeral, a garota fica confusa, sem saber exatamente o que pensar dele, mas decide seguir em frente. O que ela não sabe é que logo seria procurada por Finn (o “amigo”) para que pudessem conversar em segredo, e que logo aceitaria as investidas dele e passariam a conversar regularmente – e que isso mudaria a sua vida naquele momento de tanta dor.
O amadurecimento e também a percepção de mundo de June mudam por causa de Finn. E não porque ele tenha começado a demonstrar tudo isso e jogado as cartas com valores reais na frente da menina, mas porque aos poucos as peças começaram a se encaixar em sua vida e isso também envolveu pessoas fora do quadradinho que continha apenas June-Finn. E são esses descobrimentos que tornam a história muito bonita, mas que também mostram algumas partes bastante incômodas.
Greta e June são irmãs bastante distintas e a relação entre elas, que antes era bastante amistosa apesar das diferenças, tornou-se muito difícil especialmente após a morte de Toby. June não consegue compreender como as coisas mudaram entre elas e por qual motivo a irmã mais velha a trata com tanta hostilidade, apesar disso ser algo bastante óbvio para o leitor desde o começo: Greta foi escrita propositalmente para ser “odiada” e como um “mistério”, mas não colou. A clássica irmã prodígio mais velha e mais madura que na realidade está mais desesperada e é mais inocente do que a irmã mais nova. Sinto que Carol quis que ficássemos intrigados sobre as verdadeiras motivações de alfinetadas e maldades de Greta, mas fica bem óbvio que ela é tão infantil quanto June, e isso me irritou profundamente. A relação entre as duas tem os seus momentos bons,até, mas no geral Greta foi o pior ponto do livro todo, e muitas vezes quando ela apareceria eu sentia vontade de pular os parágrafos e chegar em algum lugar em que ela não estivesse presente.
Talvez devesse ser crime tentar ver nas pessoas coisas que elas não querem que você veja. (página 8)
Nesse meio tempo June começa a se encontrar escondida com Finn, e na verdade o fato de ela ter confiado em um homem adulto e desconhecido que a sua própria família odeia e sempre diz para se manter distante não deixa de ser um problema, para mim. Entendo que crianças são rebeldes às vezes e que não enxergam maldade em tudo, e de fato a autora quis mostrar que Finn era mesmo uma boa pessoa e que só tinha excelentes intenções com a menina, mas achei problemático da mesma forma, já que June esconde dos pais os encontros mesmo sentindo medo inicialmente. Essa aproximação dos dois me deixava muito tensa durante a leitura, e acredito que ela poderia ter ocorrido de outra forma.
Como basicamente tudo resolve acontecer ao mesmo tempo na vida de June, ela começa a construir e desconstruir o relacionamento com os seus pais, mais especificamente com a sua mãe. Sigam o meu raciocínio: ela é uma menina solitária (não tem amigos, literalmente), não se relaciona bem com a irmã, nem com os pais, só fica feliz quando finge que vive em outra época, o tio morre e ela tem apenas um amigo adulto e com hábitos de adulto (como beber e fumar) em quem confiar. Logo, não é muito difícil que ela passe a avaliar os motivos dessa solidão e de fato o que há de errado na relação que ela tem com as pessoas. Nesse sentido Carol foi bastante feliz, pois June é bem madura para a sua idade, mas ainda tem reflexões adequadas para uma menina de 14 anos que vive nos anos 80.
Eu gosto da palavra clandestina. Parece medieval. Às vezes, penso nas palavras ganhando vida. Se clandestina estivesse viva, seria uma garota pequena e pálida com o cabelo da cor das folhas no outono e um vestido branco como a lua. Clandestina era o tipo de relação que Toby e eu tínhamos. (página 297)
A história vai seguindo essa fórmula: Toby morre e June, de luto, começa a aprender mais sobre o tio com Finn e também mais sobre a sua família e sobre ela mesma. No entanto, conforme as coisas acontecem, o que se nota é que a autora criou um único padrão e inseriu todas as personagens nele: o padrão da vida dupla. É óbvio que ninguém pode ser uma única pessoa o tempo todo, temos diversas facetas, nuances e comportamentos diferentes dependendo da situação. Mas Carol dividiu todo mundo em dois literalmente e nos deixou na dúvida sobre quando (e se) as personagens iriam se tornar uma só eventualmente. June tem a vida em casa e na escola e a vida clandestina com Finn; Greta tem a vida na frente dos pais e a vida nas festas no bosque; Finn tem a vida que ele vivia com Toby e a que tinha que esconder para viver com ele, e por fim, a mãe de June tem a vida que ela gostaria de ter vivido e a vida que escolheu viver. É bastante triste notar como muitas vezes precisamos nos esconder sobre fachadas que não gostamos para sobrevivermos ou escondermos os nossos medos, e este é provavelmente o aspecto mais triste do livro (talvez mais triste do que a morte de Toby, que foi a única personagem que viveu exatamente como quis).
Se você sempre garantir que é exatamente a pessoa que esperava ser, se sempre garantir que conhece apenas as melhores pessoas, então não vai se importar de morrer amanhã. (página 265)
A AIDS no Estados Unidos dos anos 80 também teve uma participação bem importante na história. As pessoas ainda estavam confusas sobre como a doença era transmitida e June passa por algumas situações e tem que lidar com o preconceito alheio, seja ele velado ou escancarado. Mas o mais legal nisso tudo é o fato de que a garota em momento algum reproduz esse preconceito. Ficou bastante natural o modo como June lidou com isso, e em plena década de oitenta.
Por fim, Diga aos Lobos é basicamente uma história de superação, mas também de muito esclarecimento e reflexão. Os pontos negativos não chegam a ofuscar os positivos, mas diminuíram bastante a minha nota final para a obra. Talvez se June fosse mais velha, alguns aspectos do livro ficassem mais interessantes, apesar de Carol ter feito um bom trabalho do ponto de vista de um pensamento de uma jovem, acredito que certas coisas, como June achar que ama literalmente o tio (totalmente desnecessário) poderiam ter sido suprimidas ou modificadas. Esta é uma obra para quem não se importa de ficar muito triste e também para quem gosta de um pouco de melancolia – pelo menos a dose entre esses dois elementos foi certeira.
Realmente me perguntava por que as pessoas sempre estavam fazendo alguma coisa de que não gostavam. Parecia que a vida era um tipo de túnel cada vez mais estreito. Logo que você nascia, o túnel era enorme. Você poderia ser qualquer coisa. Depois, mais ou menos no exato segundo depois de você nascer, o túnel reduzia para cerca da metade daquele tamanho. Você era menino e já estava certo que você não seria mãe e provavelmente não se tornaria manicure e nem professora do jardim de infância. Depois, você começava a crescer e tudo o que fazia fechava o túnel mais um pouco. Você quebrava o braço subindo em uma árvore e descartava ser arremessador de beisebol. Era reprovado em todas as provas de matemática que fazia e cancelava qualquer esperança de ser cientista. Assim. De novo e de novo, ao longo dos anos, até você ficar preso. (…) Eu pensava que, no dia da sua morte, o túnel estaria tão estreito, você teria se apertado com tantas escolhas, que simplesmente seria esmagado. (página 330)
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- Carol Rifka Brunt é uma escritora estadunidense. Diga aos Lobos foi o seu livro de estreia, publicado em 2012.
- No Brasil o livro foi publicado pela editora Novo Conceito em 2014 e a tradução foi feita pela Bárbara Menezes.
- A revisão do livro deixou muito a desejar. Erros que saltam aos olhos e teve um até um que foi um pouco absurdo.